quinta-feira, 30 de abril de 2020

Diário de um tempo estranho (22/03/2020)


USO INADEQUADO DA PALAVRA GUERRA
22.03.2020

Não..., isto não é uma guerra!
E seria sensato, por respeito para com aqueles que infelizmente a vivem (ou viveram), que não se fizessem comparações ligeiras e absurdas desta natureza. No contexto actual, os únicos que experienciam algo parecido com uma guerra são os profissionais de saúde, e mesmo esses, aquém da brutalidade de um confronto armado.
Numa guerra, onde também coexistem situações graves de saúde pública, a fome abunda, os telhados voam, as casas afundam-se, o chão dá lugar aos abismos, as ruas não ficam desertas porque, pura e simplesmente, desaparecem. As árvores são transformadas em combustível, os animais, que adoramos, passam a integrar a dieta humana. Há pés, e pernas, e braços, e mãos, e dedos, e cabeças, e dentes, e olhos semeados pelo chão. O fogo e as balas consomem a vida à velocidade de um relâmpago.
Numa guerra, as mulheres são violadas e esquartejadas em vida. Os filhos delas são colhidos à terra com uma ligeireza chocante. Os homens são premiados com balas ou transformados em escravos.
Numa guerra, os pais não têm tempo para se aborrecerem com os filhos, porque, infelizmente, há pais que perdem os filhos e filhos que deixam de ter pais.
Numa guerra não há tempo nem vontade para cantar à varanda, porque as atrocidades cometidas roubam a alegria de viver.
Numa guerra não existem açambarcamentos, porque os alimentos, as prateleiras e os edifícios desaparecem em simultâneo, no abraço de uma bomba.
Numa guerra, as bombas chegam mais depressa do que as máscaras, as luvas, os medicamentos, os desinfectantes ou qualquer outra necessidade hospitalar.
Numa guerra, a água escasseia e não pode ser desperdiçada em lavagens supérfluas.
Numa guerra, os megafones não anunciam palavras, cospem fogo.
No campo de batalha não há tempo para disponibilizar fotos e vídeos numa internet que não existe.
Numa guerra, as pessoas não se enfastiam com o telefone, com o computador, com a televisão, com a consola, com os cd's ou com o MP3, porque esses equipamentos não passam de banalidades sem utilidade. Enganar a fome ocupa 18 horas por dia, e as outras 6 são gastas a fugir ao inimigo.
Numa guerra não há lugar para stresses idiotas. O stress vem depois do horror da destruição.
Em democracia, respeitando os seus princípios, cada um é livre para dizer o que quiser, mas sugiro, apelo se preferirem, para que deixem de utilizar termos que em nada contribuem para ilustrar a calamidade que atravessamos, mas são ofensivos para aqueles que, perante a nossa passividade e os nossos muros de arame farpado, enfrentam diariamente o dilema de uma guerra verdadeira e excruciante.

Fernando Alagoa © todos os direitos reservados


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